14-10-2016
Mulher submetida a cesárea forçada no RS estuda para ser enfermeira obstétrica

Vítima de violência obstétrica, Adelir Goés cursa Enfermagem para se tornar enfermeira obstétrica e poder oferecer a outras mães um tratamento digno às mulheres

Quem se lembra da história de Adelir Góes? O caso da moradora da cidade de Torres, no Rio Grande do Sul, movimentou as redes sociais e as ruas em 2014, depois que a polícia foi buscá-la em casa com um mandato judicial, obrigando-a a se submeter a uma cesariana para o nascimento de seu terceiro bebê.

O fato revoltou mulheres de todo o Brasil, que organizaram movimentos ativistas em prol do poder de escolha da mãe e do parto humanizado, contra a violência obstétrica.

Hoje, passados dois anos e meio de todos esses acontecimentos, Adelir decidiu fazer sua parte para mudar sua história e a de futuras gestantes. Ela decidiu cursar enfermagem, como o início de um caminho para se tornar enfermeira obstétrica, e poder oferecer a outras mães um tratamento bem diferente do que ela mesma teve. CRESCER conversou com ela, que, aos 31 anos, é mãe de Luiz Ângelo, 10 anos, Flora, 4, e Yuja, 2. O enteado, Leandro, 18, também vive com a família.

Você começou agora a cursar enfermagem para trabalhar com obstetrícia. Como tomou essa decisão?
Eu nunca imaginei que um dia poderia cursar enfermagem por fobia a sangue e a fraturas. No entanto, depois do meu caso, me envolvi demais com o ativismo do parto humanizado e fiquei cada vez mais curiosa. Lara Werner, uma amiga, me deu esse conselho [de fazer o curso] e meu marido, Emerson, me apoiou – como ela em tudo – e resolvi arriscar. Para ser enfermeira obstétrica tem que ter a pós-graduação, que, por enquanto, aqui em Torres não tem. Mas, assim que eu puder, quero, sim, procurar essa especialização.

Como foi concretizar esse plano?
Fiz o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) e tive nota até para entrar em uma faculdade pública, mas a mais próxima era a 80 km daqui. Sendo mãe e dona de casa, para mim, ficou inviável. Então fiz o FIES (Financiamento Estudantil) mesmo, em uma instituição particular chamada ULBRA, na mesma cidade em que eu moro.

Como é sua rotina de estudante e trabalhadora? Como se organiza, sendo mãe?
Meu filho mais velho e meu enteado vão para a escola de manhã. Minhas filhas mais novas vão para a creche e meu enteado mais velhos as busca. Já deixou tudo preparado à noite: o almoço e o lanche. Vou para a faculdade pela manhã e trabalho como cuidadora de idosos à tarde. Na janta, já estou em casa. Por volta das 21h30, quando as crianças já foram dormir e a casa está mais calma, estudo o que vi na aula em casa. No próximo semestre, não sei se vou continuar a trabalhar porque quero poder me dedicar melhor ao curso.

Hoje, como enxerga tudo o que aconteceu com você naquela época, em abril de 2014?
Agora, acredito que teve um propósito. Jamais pensaria em enfermagem. Eu me imaginava lecionando, como professora. A vida tem dessas coisas.

Conseguiu superar o que aconteceu?
Olha, estou fazendo de um limão uma limonada. Foi muita humilhação. Não dá para esquecer, não. Não sei o que seria de mim sem todo aquele apoio que recebi. A resiliência veio externamente, do ativismo! Assim, digo que sou forte. Superar, só depois que eu conseguir ganhar a causa legalmente. Não mexi com ninguém. Pelo contrário: assinei um termo para que nada pudesse acusar a médica.

Que marcas ainda guarda daqueles dias?
A marca boa fica pelo movimento que aquilo gerou. O cenário obstétrico já deu uns poucos passos para a humanização. A ruim é que ainda parece que foi ontem: a polícia, as ameaças, os xingamentos. É muito ruim lembrar disso.

O que mudou na sua vida depois daquele episódio?
Mudou tanta coisa… Perdi amizades, tive que deixar de falar com um monte de parentes meus por causa de seus julgamentos, ainda que eles me conhecessem desde sempre. Mas também ganhei novas amizades e descobri como sou forte. Parece até que nada mais me abalará. Não sei, mas que parece, parece sim (risos).

Muitas pessoas se uniram e se posicionaram a seu favor. Ainda tem contato com ativistas que lutaram pela sua causa?
Sim. Algumas se tornaram amigas mesmo e a relação com as demais ficou do apoio de uma às outras. Agora fiquei mais afastada, por conta de todos esses afazeres, mas, assim que posso, respondo nos grupos.

Ao mesmo tempo em que muitos defenderam sua casa, muita gente julgou, apontou o dedo. Como lidou com isso? Acontece até hoje?
Sim, isso acontece – e muito. Mas já não me sinto com aquela ânsia de responder. Aprendi a ignorar. Antes eu respondia e chorava muito. Eu e a minha família saímos de Canoas, aqui no Rio Grande do Sul, uma cidade movimentada, para uma área rural, querendo sossego, verde, ar puro, plantar e trabalhar sem trânsito e sem todos aqueles problemas de cidade grande. Logo depois aconteceu isso e fiquei conhecida desse modo, sendo julgada. Isso foi (e ainda é) muito doloroso. Aquelas médicas não têm noção do que fizeram com a minha vida e com a vida da minha família.

Como estão seus filhos hoje?
Estamos bem. Hoje, estamos mais tranquilos. Meu enteado e meu filho já sabem argumentar sobre o caso. Levamos uma vida normal. Pensamos e repensamos várias e várias vezes em mudar de novo, porque ficou difícil de meu marido arranjar trabalho, por causa dos julgamentos. Passamos por uma fase até difícil financeiramente. Hoje, estamos na fase de recuperação. Trabalhamos e decidimos continuar em Torres.

 

Fonte: Revista Crescer (reduzida)